Falar de
espiritualidade neste mundo do século XXI é falar de um tema cuja relevância
salta aos olhos. Diante de uma sociedade faminta por significado existencial,
sedenta pelas coisas da alma humana e cada vez mais curiosa sobre Deus, é
fundamental que a Igreja de Cristo não se furte a ensinar e pregar as Sagradas
Escrituras. Na verdade, isso sempre foi necessário desde a proclamação do
célebre “Ide” – mas há hoje uma urgência contemporânea pela anunciação das boas
novas do Evangelho, porque somos cercados por “espiritualidades” que, ignorando
a pessoa de Jesus, desenvolvem-se a partir das muitas e variadas experiências
de cada um. Sabemos que o Espírito Santo, ao longo de toda a Bíblia,
fornece ao homem o mapa da verdadeira espiritualidade. As histórias
que ela conta nos
convidam a um outro mundo que não o nosso – um mundo maior que nós mesmos. As
histórias bíblicas nos convidam ao mundo da criação, da salvação e da bênção de
Deus.
Evidentemente,
todo o cânon sagrado é um texto integral – mas o evangelho de Marcos, o segundo
livro do Novo Testamento, tem certa primazia. Afinal, ninguém nunca havia
escrito um evangelho cristão quando Marcos escreveu o dele. Com isso, criou um
novo gênero. Sua forma de escrever que logo se tornou fundamental e formativa
para a vida da Igreja e do cristão. Isso veio contrastar com a preferência
antiga pela criação de mitos, prática que reduzia os humanos a meros
espectadores do sobrenatural. Também vai de encontro à predileção moderna pela
filosofia moral, concepção que nos torna responsáveis por nossa própria
salvação.
A história narrada
no evangelho segundo Marcos é o relato verbal da realidade que, como seu
assunto – a Encarnação – é, ao mesmo tempo,
divina e humana. Ela revela algo que jamais concluiríamos por nossa própria
observação, experiência ou suposição; e, ao mesmo tempo, nos envolve,
colocando-nos na ação como receptores e participantes, sem jogar para nós a
responsabilidade de fazer tudo dar certo. As implicações disso para nossa
espiritualidade são enormes, já que a forma, por ela mesma, nos protege das
duas principais práticas que levam a pessoa a se afastar do caminho certo: a de
viver como espectador leviano dos fatos, exigindo sempre atrativos novos e mais
exóticos vindos do céu; ou como moralista ansioso, aquele que toma sobre seus
ombros todas as cargas do mundo. A própria forma do texto molda em nós reações
que tornam muito difícil sermos simples espectadores ou moralistas. Não estamos
diante de um texto que podemos dominar. Pelo contrário – somos dominados por
ele.
A espiritualidade
é a atenção que damos à alma, ao mundo interior invisível de nossa vida – um
mundo que é a essência de nossa identidade,
esta alma à imagem de Deus que engloba toda nossa individualidade e glória. A
espiritualidade pode parecer uma coisa maravilhosa, mas vinte séculos de
experiência cristã diminuíram bastante o entusiasmo que ela outrora provocava.
E sua prática não se mostra tão maravilhosa. Olhando para nossa história, não
nos admiramos ao verificar que a espiritualidade costuma ser vista com
desconfiança, quando não com hostilidade declarada. Isso acontece porque, na
prática, e com muita frequência, ela se transforma em neurose. Em nossos dias,
temos visto a espiritualidade – ou uma suposta espiritualidade – descambar para
o egoísmo, principalmente quando vira mera pretensão.
Mas
como isso pode acontecer? A resposta é simples: isso acontece quando nos
afastamos da história do Evangelho de Cristo e adotamos a nossa própria
experiência, e por que não dizer, a nós mesmos como elemento fundamental e
autorizado da espiritualidade. Passamos a fazer a exegese em nós mesmos como se
fôssemos textos sagrados. Não jogamos o Evangelho fora; contudo, ele fica na
prateleira e pensamos que lhe conferimos honra consultando-o de vez em quando,
como uma obra de referência indispensável. Por outro lado, nossos orientadores
espirituais nos ensinam que somos seres gloriosos e almas preciosas. Somos
levados a acreditar que nosso anseio pela santidade, bondade e verdade é
magnífico. Mas a espiritualidade não está em nós mesmos, pois o próprio Deus
revelou que ela está em Jesus. Como em tudo nesta vida, espiritualidade é coisa
que se aprende – e o evangelho segundo Marcos é um texto didático para se
entender o que é a espiritualidade.
Tomamos
o texto e lemos a história de Jesus, uma história estranha. Na verdade, o
evangelista conta muito pouco do que nos interessa em uma história. Não ficamos
sabendo sobre Jesus praticamente nada do que queremos saber. Não há descrição
da sua aparência; nada ali é dito sobre sua origem, sobre quem eram seus
amigos. Informações sobre a educação que recebeu, ou sobre sua família, são
inexistentes. Fica difícil avaliar ou entender uma pessoa sem esses dados. E
também há muito pouca referência ao que o filho de José e Maria pensava e
sentia, suas emoções e lutas interiores. Embora Jesus seja a pessoa mais
citada, o texto é surpreendentemente reticente quanto a ele
A
certa altura, porém, entendemos que se trata de uma história sobre Deus e sobre
nós. Jesus é a revelação de Deus; então, quando nos defrontamos com ele,
encaramos o que há em Deus. A narrativa abrange outros personagens, claro, e
são muitos: os doentes, os famintos, as vítimas sociais, os excluídos. Mas
Jesus é sempre o centro. Nenhum evento acontece e nenhuma pessoa aparece sem
ele. Ali, Cristo subsiste tanto no contexto quanto no conteúdo da vida de
todos. A espiritualidade, a atenção que dedicamos à nossa alma, transforma-se
quando permitimos que o livro de Marcos dê forma a nossa prática. O texto nos
ensina essa percepção: linha após linha, página após página, o conteúdo é
sempre o mesmo: Jesus, Jesus e mais Jesus. Nenhum de nós é capaz de fornecer o
conteúdo de nossa própria espiritualidade, pois ela nos é concedida por Jesus.
O texto não dá margem a exceções.
A morte de Jesus – Lendo
o texto do Evangelho conforme o escreveu Marcos, logo descobrimos que toda a
história se canaliza para a narração dos acontecimentos de uma única semana da
vida de Jesus – justamente a semana crucial da paixão, morte e ressurreição do
Filho de Deus. E, dos três eventos, sua morte é apresentada com mais detalhes.
Se nos pedissem para dizer com o menor número possível de palavras qual é o
conteúdo do livro de Marcos, deveríamos responder: “A morte de Jesus”. A
princípio, não parece um conteúdo muito promissor, especialmente para os que
procuram um texto que os oriente na vida, capaz de alimentar a alma. Mas é
assim. A história possui dezesseis capítulos. Nos oito primeiros, Jesus aparece
vivo, passeando sem pressa pelas vilas e caminhos da Galiléia, levando vida às
pessoas. De repente, bem na hora em que atrai a atenção de todo mundo, Marcos
começa a falar sobre morte. Os oito capítulos finais de seu evangelho são
dominados por palavras de morte.
O
prenúncio da morte de Cristo assinala também uma mudança de ritmo. A narrativa,
na primeira metade do livro, apresenta características de tranquilidade e
descreve os movimentos do Mestre em um ambiente quase idílico. Porém, isso muda
diante da tragédia anunciada, a partir do momento em que Jesus dirige-se
diretamente para Jerusalém, onde seria martirizado. Urgência e gravidade passam
a caracterizar a narrativa. Muda a direção, o ritmo, o clima. Jesus é explícito
em três ocasiões: ele irá sofrer, será morto e ressurgirá, conforme se lê,
respectivamente, em Marcos 8.31; 9.31; e
10.33-34. E acontece a morte, descrita em seus horrores com detalhes e a
precisão digna de um arguto observador. Nenhum outro acontecimento da vida de
Jesus foi contado com tantas minúcias. Não há como duvidar da intenção de
Marcos de deixar bem claro que o enredo, a ênfase e o significado de Jesus
residem em sua morte. E o evangelista faz questão de definir este sacrifício
como voluntário. Jesus não era obrigado a ir para Jerusalém; fê-lo por sua
própria vontade. Explicitamente, concordou com sua própria morte. Logo, não foi
um episódio acidental, tampouco inevitável. Ele aceitou a morte para que os
outros pudessem receber vida – ou, conforme o texto diz: - Jesus veio para “dar
a sua vida em resgate por muitos”.
Sintomaticamente,
cada um dos três anúncios explícitos da morte de Cristo é concluído com o
anúncio da ressurreição. A história daquele evangelho como um todo, se encerra
com o testemunho da ressurreição. Isso não dá menor valor à morte, mas a torna
muito diferente do que estamos acostumados a pensar. As ideias de tragédia e
procrastinação são as palavras que caracterizam a atitude de nossa cultura
diante da morte. Herdamos dos gregos esta visão trágica da finitude humana.
Eles escreviam textos primorosos sobre mortes trágicas – vidas ceifadas por
obra de forças grandes e impessoais, circunstâncias indiferentes ao heroísmo e
esperança do ser humano.
Já
a tentativa de procrastinar a morte ao máximo é legado da medicina moderna. Em
nossa cultura, a vida é reduzida a batimentos cardíacos, circulação sanguínea,
impulsos cerebrais. Como as pessoas só levam em conta sobre a vida o que a
biologia pode estudar – sem enxergar sentido, espiritualidade, nem eternidade
–, as tentativas de afastar, adiar e negar a morte são cada vez mais intensas.
O detalhe é que não houve procrastinação na morte de Jesus. É necessário,
portanto, irmos contra nossa cultura, permitindo que o vigoroso relato de
Marcos molde nosso entendimento de modo a entendermos nossa própria morte
dentro das ricas dimensões e relações da história de Jesus.
O asceta e o
esteta – Bem no centro do evangelho segundo Marcos
há uma passagem que pode ser considerada o cerne da espiritualidade do texto e
consiste de duas histórias. Na primeira, Jesus chama os discípulos à renúncia,
quando eles partem para Jerusalém. É a dimensão asceta da espiritualidade. Já
o segundo relato, o da transfiguração de Cristo no Monte Tabor, fornece a
dimensão estética dessa mesma espiritualidade. As histórias são cercadas, nas
duas extremidades, por afirmações da verdadeira identidade de Jesus como Deus
entre nós. Pedro afirma: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. No final, uma
voz vinda do Céu declara: “Este é o meu Filho amado. Ouçam-no!”. Era o
testemunho humano sendo legitimado pela confirmação divina.
Essas histórias
possuem uma conexão orgânica, um ritmo binário e uma teologia espiritual única.
Elas reúnem os movimentos ascetas e estéticos, o sim e o não que atuam juntos
no coração da teologia espiritual. O ascetismo aparece circunscrito nas
palavras do Salvador, que são breves e diretas: “Se alguém quiser
acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Marcos 8.34).
Fica evidente que Jesus vai a algum lugar e nos convida para irmos com ele. É
um convite, sim, à renúncia. Sempre há um forte elemento ascético na teologia
verdadeiramente espiritual. Seguir Jesus implica em não seguir nossos impulsos,
apetites, caprichos e sonhos, pois tudo isso foi danificado pelo pecado. Seguir
Jesus significa não seguir as práticas de procrastinação e negação
da morte, mesmo em uma cultura que, pela busca obsessiva da vida sob a
inspiração de ídolos e ideologias, acaba encontrando uma existência tão
restrita e degradada que dificilmente merece o nome de vida. Mas a arte de
dizer “não” nos deixa livres para seguir Jesus.
Na
monumental obra escrita por Marcos, o esteta aparece ao lado do asceta. É o
“sim” de Deus em Jesus. Pedro, Tiago e João o veem transfigurado na montanha,
em uma nuvem brilhante, na companhia de Moisés e Elias. Os discípulos viram a
beleza da glória do Senhor, e é ela que acabamos por experimentar ao nos
aproximarmos do Pai. Há sempre um componente estético forte na verdadeira
teologia espiritual. Subir ao monte com Jesus significa deparar-se com uma
beleza de tirar o fôlego. Permanecer na companhia dele é contemplar sua glória
e escutar a confirmação divina da revelação nele. Aqui está o segredo do Jesus
transfigurado. Ele é a forma da revelação, e a luz não cai do alto sobre essa
forma, nem vem de fora – antes, brota de seu interior. A única reação adequada
a essa luz é manter os olhos abertos para observar o que está sendo iluminado:
adoração.
O
impulso estético na teologia espiritual relaciona-se a treinar a percepção,
isto é, aprender a apreciar o que está sendo revelado em Jesus. Não somos bons
nisso, pois o pecado prejudicou nossos sentidos. O mundo, apesar de alardear a
celebração da sensualidade, é implacável em anestesiar e esquecer o que é
sentir, restringindo a estética ao que se pode encontrar em museus ou jardins.
Nossos sentidos precisam de cura e reabilitação para se tornarem adequados a
receber e responder às visões e aparições do Espírito Santo de Deus.Nosso
corpo, com seus cinco sentidos, não é empecilho para a vida de fé. Nossa
sensibilidade não é barreira para a espiritualidade, e sim, o único acesso a
ela.
Marcos
escolheu mostrar Jesus como a revelação de Deus e fez um relato completo da sua
obra na salvação. Somos convidados a participar por inteiro da história de
Jesus, e o evangelista nos mostra como fazer isso. Ele não se limita a contar
que Jesus é o Filho de Deus; nem a nos dizer que nos tornamos beneficiários de
sua expiação. Ele nos convida a morrer a morte de Jesus e a viver sua vida com
a liberdade e a dignidade dos participantes. E eis aqui um fato maravilhoso –
ficamos no centro da história, sem nos transformarmos nos seus principais
protagonistas. Habitualmente, e os crentes sabem bem disso, sempre é perigoso o
interesse do indivíduo em si mesmo. A obsessão com as questões da alma fazem
com que Deus passe a ser visto como mero acessório da experiência pessoal. É
preciso muita vigilância – e a teologia espiritual é, entre outras coisas, o
exercício dessa vigilância.
Por
isso o evangelho de Marcos é um texto básico para se entender a espiritualidade
humana. Suas histórias sobre vida e morte, crucificação e ressurreição, nos
mostram e nos ensinam sobre negação e afirmação. Mas não se limitam a isso.
Também levam-nos adiante em fé e obediência, para a vida que só se completa,
por fim no não definitivo e no sim glorioso do Jesus crucificado e ressurreto.